Geringonça, arco da governação, troika. Assim: direto e sem aspas. É com esta estratégia de aproximação ao discurso político que a comunicação social nos tem presenteado. Entretanto, a discussão está lançada: será que os jornalistas têm o dever de se demarcar do uso destes e de outros vocábulos?
Ponto um: a língua não é algo estanque e imutável. É nas relações pessoais que o leque de palavras que temos à disposição se define e multiplica.
Ponto dois: temos uma necessidade natural de atribuir nome às coisas. É uma forma de simplificação, que se traduz em pragmatismo nas interações pessoais.
Ponto três: parece-me perfeitamente natural que a renovação do vocabulário político se traduza na renovação do discurso jornalístico. Se este fala sobre o outro, então é lógico que este assuma as expressões do outro.
Em contrapartida, sabemos também que o discurso político está revestido de interesses. A palavra “geringonça”, por exemplo, concentra em sim um sentido pejorativo que nos remete para instabilidade, para algo mal feito. Além disso, o termo nunca foi utilizado para designar a coligação PSD-CDS. O deputado socialista João Galamba usou o termo “caranguejola” para se referir a esta coligação, mas o termo não ficou no ouvido. Depreende-se, então, que apenas a solução governativa de esquerda tem o direito a ser vista como uma “caranguejola”.
Mas afinal, o que é que isto realmente significa? O Bloco Central entrou em crise. O arco da governação, composto por PS, PSD e CDS, já não é uma verdade absoluta. Há soluções para a alternância de poder entre estes três partidos. E é nesta mudança de paradigma que surge a geringonça que, enquanto vocábulo, funciona muito bem.
Funciona, porque dá cor ao discurso político. Funciona, porque os próprios visados a utilizam e, nessa utilização, renovam o significado que lhe está intrínseco. Funciona, porque, com ironia ou não, toda a gente a diz com naturalidade.
Em conclusão, uma nova realidade, com sentidos renovados, foi obrigada a procurar novas palavras para a nova experiência. Tão simples quanto isto.
Porém, entretanto, não nos podemos esquecer do tacho nem do pântano político. Tão pouco podemos descurar as inverdades, as desobrigações, os “inconseguimentos”. Todas estas palavras foram, umas mais do que outras, popularizadas por agentes políticos. Umas geram sorrisos e outras fazem simplesmente o que devem fazer: suavizar a mentira, o compromisso, a frustração.
Até aqui não vejo problema nenhum. Estes vocábulos são característicos do discurso de quem os profere e podemos dizer que não velam nada. Constituem mais uma forma de colorir o debate.
São as subtilezas escondidas nos “contribuintes” e no “resgate da troika” que me preocupam. O discurso tem poder e, por vezes, parece que nos querem dizer que não somos pagantes e que a troika nos salvou. Parece que nos dizem que essa era a última esperança para um país a afundar-se. Parece que nos dizem que o BCE, a UE e o FMI reuniram esforços altruístas. E que os pagantes apenas têm que contribuir para o agradecimento devido.
Expressões assim não deviam caber no discurso político e, consequentemente, não ter lugar no jornalismo.
Ilustração de Hélder Oliveira – Expresso